segunda-feira, 3 de novembro de 2014

Porque é que me castras e me manténs refém

Porque é que me castras e me manténs refém
do nosso doce lar, das vidas imperfeitas
talhadas nos céus, como tudo o que é divino?
Os caminhos da natureza são diversos,

pedem-me o interdito, o frágil amuleto.
Porque é que repetidamente me provocas
o medo de te perder, e não o desejo
ardiloso de ti, mais do que dos sobressaltos

de um mundo pequeno e breve, onde não caibo?
Ama-me apenas como um mundo que começa
na porta do teu ser, que dele se alimenta

para nos tornarmos maiores, honrar a chama,
a forja de vontades, que em ti proclama
a marca da aliança, o clamor da vida.

domingo, 2 de novembro de 2014

Freelancer

Freelancer da vida, devotada
a tarefas heróicas, desprezíveis,
a febre da vida, remoçada
e a febre de sucessos, repetida.

quarta-feira, 22 de outubro de 2014

Uma questão de genes

Não me lembro muito da minha infância, a menos que comece a desfiar religiosa e regradamente o rosário das memórias, como fiadas de cerejas numa tarde quente de Maio. São impressões fugitivas retocadas, uma poalha dourada no limiar da percepção de mim. Fui feliz.
Caminho por essa via láctea como quem vai para lado nenhum, aos poucos e com confiança, o sol a bater-me na face cada vez que regresso ao pátio da casa, às árvores, à fruta que se colhia porque sim, porque era preciso trepar às árvores. O sabor recuperado de um pão com manteiga, só manteiga, só pão, a avó que rezava, só som, como quando ralhava, como quando cantava. A roupa a bater no tambor futuro do lavadouro, chuva de bolas irisadas em dias de mais sabão, um universo inteiro em harmonia, tudo igual, tudo agora. Os cheiros da cozinha a insinuar-se na antecipação do sabor, o quase doloroso primeiro sorvo da broa em delícias de saliva, só pão, só som, o vento nas tardes da cevada de inverno. A gloriosa bebedeira da mãe em dias do cozinhar a sério, mais que um, mais que três, ritos de celebração do corpo que me leva pela estrada desconhecida, o meu corpo, este, onde moro com todos os passados.
Fui feliz, sou. Abrem-se-me a cada instante gloriosos nadas que me arrebatam, afinal tão importantes como os nadas que passaram e me fizeram feliz, para sempre, só pão, só som, só poalha dourada.

segunda-feira, 22 de setembro de 2014

Remar contra a maré

Os músculos intelectivos convergem na tentativa de superar a vida, os impulsos isolados cuidadosamente depositados na rede do comportamento automático. Avançar, sempre, mesmo quando uma sirene distante assegura que não é possível, que a corrente é demasiado forte, que o cosmos será inevitavelmente devorado pelo caos que arrasta e dissolve as casas, as praias, as flores da prole humana e inumana geradas por sensíveis movimentos da esperança e da vontade.
A solidão actua como um filtro: os fragmentos da viagem são espalhados pela maré informe e poderosa do oblívio, o translúcido anulado pelos medos do negro primordial, do nada que se sobrepõe ao ser como certeza, da ilusão de si quebrada pelas vagas do tempo que se espraiam e desagregam em corpúsculos a falésia. Um passo para trás, dois passos para a frente, remar contra a maré, luta contínua sem quartel e sem esperança senão a de lutar, os remos asas cépticas de borboleta.
Cansaço na certeza de não poder ganhar, de não poder chegar às praias do outro lado onde se desdobra a vida, toda, onde finalmente se está a salvo do esforço constante de remar. Na força, a certeza de as coisas fulgurantes permanecerem adormecidas até ao momento em que aleatoriamente cintilam, trazendo consigo a calma, o nirvana, em que a maré afrouxa, ou pára, ou não se sente. Somos seres de prosa e de prazer na mais alta potência, máquinas de avançar no nada para dele retirar o que é tudo, a beleza fugaz e ilusória de ser veleiro andante, contra ventos e marés.
Parar de remar é entregar-se ao nada do passado e sofrer o nada do presente, parar significa voltar de imediato ao nada que já era, mas sem as asas do infinito que nos chama.

terça-feira, 19 de agosto de 2014

Porque é que não andas comigo de mão dada

Porque é que não andas comigo de mão dada
nem me sussurras ternuras publicamente
mostrando-nos cúmplices e permitindo-me
oferecer-te todo o fulgor do meu desejo?

Porque é que não me seduzes privadamente,
levantando toros, rachando a nossa lenha,
preparando-nos o inverno e sossegando
as minhas entranhas exteriores, que comandam

este escravo corpo, encerrado num espírito
que não o conhece e o julga acerbamente?
Que proclama que te amo, mas que não chega

amar-te se não fores o mundo e não mo deres,
aqui, na minha mão fechada, para que eu o guarde
e reserve as sementes para o futuro.

segunda-feira, 18 de agosto de 2014

Prólogos

Hoje soube que ia morrer, e supliquei
às vozes do Hades que em mim se enlaçavam
o preço, o valor, o ponto da passagem
que levarei no fim, memória da viagem.

Mas as colunas douradas, que a sustentam,
no fundo da espiral, do vórtice que sou,
vibraram na vida que se escoa e nasce,
flamejando flores em que o prazer cresce,

porque o segredo escuro que me ata, leve,
cobre a voz da sereia e atiça o lume
das vozes que do fundo sobem e me enleiam

e os laços que me ligam à minha própria morte
são fogo que me nutre e assegura a vida
dos rostos mudos do presente que me basta.

domingo, 3 de agosto de 2014

O poeta é um voyeur

O poeta é um voyeur
que vê tudo claramente,
sentindo em si, com rigor,
o que sente a outra gente.

E os que vêem nos seus sonhos
a visão que reconhecem
lêem no espelho de si
o que de si desconhecem.

E assim se torna a escrita
no baloiço de si mesma,
matriz de todas as vidas
que veste o tom de um poema.