sexta-feira, 22 de fevereiro de 2013

A arma dos juízes

Ao que parece, os juízes estão autorizados pela lei que os vai regendo a possuir uma arma de defesa que os mantenha a salvo dos que, não conhecendo ou não respeitando a Lei, queiram pela força eximir-se a ela ou sujeitá-la. Sendo certo, como infelizmente o é, que a Lei está hoje debaixo de fogo cerrado, a arma dos juízes tem de estar bem oleada e afinada.
A arma dos juízes é precisamente a Lei com que estão comprometidos, por muito que essa lei se vá alterando ao sabor dos poderes que a manipulam. Lei é lei, ainda que deslize. E quem a conhece, tem defesa. Por isso ela é a melhor defesa para os juízes, que, sobretudo nas instâncias superiores, podem inclusive avaliar e julgar o modo como a lei vai deslizando, mantendo-a dentro de razoáveis limites de decência humana.
Se não usarem prontamente essa arma, é a sua própria sobrevivência que colocam em jogo, no sentido em são cúmplices da criação de um mundo onde os seus filhos e netos não poderão viver com dignidade, independentemente das armas que suponham deixar-lhes para o futuro. Um mundo em que não há certo nem errado, em que os piores estão a salvo, da justiça como da justa ira dos justos, um mundo em que os melhores, incluindo os que lhes são caros, possam ser penalizados sem justa causa.
Se não usarem prontamente essa arma, é também o seu lugar no mundo que está em jogo: morta a Lei, submissa que esteja à mais venal desumanidade, não resta aos juízes mais que um funcionalismo oco que, mais tarde ou mais cedo, os considerará como inúteis, amanuenses submissos e facilmente descartáveis.

domingo, 6 de janeiro de 2013

O manga-de-alpaca e o animal feroz

Os políticos que nos desgovernam são funcionários públicos: o Estado paga-lhes, e bem, para gerirem e organizarem a vida pública. E se é verdade que o Estado, entidade fantasmagórica e inidentificável que os acolhe e acoberta, não se mostra na hora de os responsabilizar, não é menos verdade que, na hora de pagar, o Estado é uma entidade bem visível: o Estado somos nós, quem lhes paga somos nós, e é a nós portanto que deveria caber a avaliação do seu desempenho.
A actividade política, o governo, a res publica, não são um emprego, são um trabalho, e devem portanto ser enquadradas pelas regras laborais ditas de mercado. É imperativo avaliar essa gente, para que o seu contrato de trabalho não seja renovado no caso de desadequação ao posto de trabalho, no caso de negligência durante o trabalho, no caso de, como muitas vezes sucede, pura e simplesmente não trabalharem. Para essa operação cívica de vigilância, será sempre útil tipificar evidências da sua desadequação ao posto de trabalho, da sua negligência culposa, da sua falta de zelo e diligência.
O perfil do mau trabalhador do serviço público em Portugal pode facilmente traçar-se a partir de duas categorias fundamentais, perfeitamente reconhecíveis na política apesar das suas variantes: o manga-de-alpaca e o animal feroz. Visíveis sobremaneira na administração central, estas categorias estendem-se, mais coisa menos coisa, a muitas organizações – são quase um cliché do que é ser verdadeiramente um mau português e um mau trabalhador.
O manga-de-alpaca é um resquício do salazarismo, do tempo em que a ascensão social – ou, melhor dizendo, a fuga ao trabalho braçal e à fome, ao absoluto anonimato – se fazia por uma laboriosa instrução escolar e o correlativo título. No país de doutores que ainda temos, é visível a sua ostentação provinciana de sinais sociais que o situam como primus inter pares. O manga-de-alpaca arroga-se inocentemente seguir a cartilha que lhe deu o ser, e engasga-se genuinamente quando essa cartilha não lhe fornece respostas. As semelhanças são ainda notórias: já não invoca Deus, apenas a Pátria, mas compor a família é o que acima de tudo o move.
O manga-de-alpaca borra-se por pouco e preocupa-se com sua face visível. A casa de férias, umas viagens e uns aforros chegam-lhe para os luxos do corpo, os da alma assegurados por se sentir um honestíssimo funcionário e pai de família, sem outra responsabilidade que não seja a de ser mais uma roda na engrenagem que o legitima e que legitima com a sua tibieza. Prefere não prevaricar porque lhe basta calar, e nunca aspirou a mais do que passar de remediado a composto, acreditando assim estar a coberto do juízo público sobre a sua legitimidade académica, de funcionário público e de cidadão-chefe-de-família. O grande problema é que a família cresce e, de filhos para netos, o manga-de-alpaca tem já que compor uma pequena legião.
O animal feroz é o produto da transição entre a sobrevivência e a abundância. É fruto do liberalismo, seja lá isso o que for. Vem de mesa humilde mas farta, de costas direitas, de esquemas e subterfúgios, do dinheiro e da escolaridade fáceis, do país dos chicos-espertos. Habituaram-no a pensar que merece o melhor, que tudo lhe é devido, e não olha meios para atingir os seus fins. A sua família, sempre provisória e que modifica ao sabor do momento, é a dos que possam contribuir para os seus fins individuais, resmas de mangas-de-alpaca para cada entorse legal. Embriaga-se com o próprio sucesso, e nada o satisfaz. Para o animal feroz, a Pátria é um conceito ultrapassado e inútil, o seu Deus é ele próprio, e o paraíso uma selva em que reine, com tudo a que acredita legitimamente ter direito – e não lhe chega compor-se.
O animal feroz subiu a pulso e a punho, vendeu a alma e a face desde cedo e perdeu qualquer resquício de vergonha. É-lhe indiferente contradizer-se ou mentir, desde que não possa ser criminalmente acusado de nada: na sua noção de rectidão, uma decisão judicial equivale ao juízo público. Roça, no mínimo, a ilegalidade e exibe a arrogância de quem está seguro de que a teia que construiu lhe permitirá ficar impune. O grande problema é que a teia se alarga à medida da sua ambição, e são, por isso, mais que muitos os que dele dependem para se compor.
Nenhum destes dois espécimes trabalha, ainda que se arroguem publicamente de uma diligência a toda a prova O manga-de-alpaca rumina, reforma e regurgita a cartilha que estudou, o animal feroz estudou por outra cartilha, e elabora e remartela o digestivo do manga-de-alpaca. A insondável cumplicidade entre estas figuras que enxameiam o alto funcionalismo público não depende da posição relativa de um e outro.
O animal feroz assegura ao manga-de-alpaca a carreira no funcionalismo público político, o manga-de-alpaca fornece ao animal feroz o apoio institucional que lhe permite não ser penalizado, não ser demitido, não ser judicialmente acusado, em suma, ficar impune. Um e outro parasitam, há longos anos, um país demasiado débil para os sustentar.