quarta-feira, 22 de outubro de 2014

Uma questão de genes

Não me lembro muito da minha infância, a menos que comece a desfiar religiosa e regradamente o rosário das memórias, como fiadas de cerejas numa tarde quente de Maio. São impressões fugitivas retocadas, uma poalha dourada no limiar da percepção de mim. Fui feliz.
Caminho por essa via láctea como quem vai para lado nenhum, aos poucos e com confiança, o sol a bater-me na face cada vez que regresso ao pátio da casa, às árvores, à fruta que se colhia porque sim, porque era preciso trepar às árvores. O sabor recuperado de um pão com manteiga, só manteiga, só pão, a avó que rezava, só som, como quando ralhava, como quando cantava. A roupa a bater no tambor futuro do lavadouro, chuva de bolas irisadas em dias de mais sabão, um universo inteiro em harmonia, tudo igual, tudo agora. Os cheiros da cozinha a insinuar-se na antecipação do sabor, o quase doloroso primeiro sorvo da broa em delícias de saliva, só pão, só som, o vento nas tardes da cevada de inverno. A gloriosa bebedeira da mãe em dias do cozinhar a sério, mais que um, mais que três, ritos de celebração do corpo que me leva pela estrada desconhecida, o meu corpo, este, onde moro com todos os passados.
Fui feliz, sou. Abrem-se-me a cada instante gloriosos nadas que me arrebatam, afinal tão importantes como os nadas que passaram e me fizeram feliz, para sempre, só pão, só som, só poalha dourada.