domingo, 6 de janeiro de 2013

O manga-de-alpaca e o animal feroz

Os políticos que nos desgovernam são funcionários públicos: o Estado paga-lhes, e bem, para gerirem e organizarem a vida pública. E se é verdade que o Estado, entidade fantasmagórica e inidentificável que os acolhe e acoberta, não se mostra na hora de os responsabilizar, não é menos verdade que, na hora de pagar, o Estado é uma entidade bem visível: o Estado somos nós, quem lhes paga somos nós, e é a nós portanto que deveria caber a avaliação do seu desempenho.
A actividade política, o governo, a res publica, não são um emprego, são um trabalho, e devem portanto ser enquadradas pelas regras laborais ditas de mercado. É imperativo avaliar essa gente, para que o seu contrato de trabalho não seja renovado no caso de desadequação ao posto de trabalho, no caso de negligência durante o trabalho, no caso de, como muitas vezes sucede, pura e simplesmente não trabalharem. Para essa operação cívica de vigilância, será sempre útil tipificar evidências da sua desadequação ao posto de trabalho, da sua negligência culposa, da sua falta de zelo e diligência.
O perfil do mau trabalhador do serviço público em Portugal pode facilmente traçar-se a partir de duas categorias fundamentais, perfeitamente reconhecíveis na política apesar das suas variantes: o manga-de-alpaca e o animal feroz. Visíveis sobremaneira na administração central, estas categorias estendem-se, mais coisa menos coisa, a muitas organizações – são quase um cliché do que é ser verdadeiramente um mau português e um mau trabalhador.
O manga-de-alpaca é um resquício do salazarismo, do tempo em que a ascensão social – ou, melhor dizendo, a fuga ao trabalho braçal e à fome, ao absoluto anonimato – se fazia por uma laboriosa instrução escolar e o correlativo título. No país de doutores que ainda temos, é visível a sua ostentação provinciana de sinais sociais que o situam como primus inter pares. O manga-de-alpaca arroga-se inocentemente seguir a cartilha que lhe deu o ser, e engasga-se genuinamente quando essa cartilha não lhe fornece respostas. As semelhanças são ainda notórias: já não invoca Deus, apenas a Pátria, mas compor a família é o que acima de tudo o move.
O manga-de-alpaca borra-se por pouco e preocupa-se com sua face visível. A casa de férias, umas viagens e uns aforros chegam-lhe para os luxos do corpo, os da alma assegurados por se sentir um honestíssimo funcionário e pai de família, sem outra responsabilidade que não seja a de ser mais uma roda na engrenagem que o legitima e que legitima com a sua tibieza. Prefere não prevaricar porque lhe basta calar, e nunca aspirou a mais do que passar de remediado a composto, acreditando assim estar a coberto do juízo público sobre a sua legitimidade académica, de funcionário público e de cidadão-chefe-de-família. O grande problema é que a família cresce e, de filhos para netos, o manga-de-alpaca tem já que compor uma pequena legião.
O animal feroz é o produto da transição entre a sobrevivência e a abundância. É fruto do liberalismo, seja lá isso o que for. Vem de mesa humilde mas farta, de costas direitas, de esquemas e subterfúgios, do dinheiro e da escolaridade fáceis, do país dos chicos-espertos. Habituaram-no a pensar que merece o melhor, que tudo lhe é devido, e não olha meios para atingir os seus fins. A sua família, sempre provisória e que modifica ao sabor do momento, é a dos que possam contribuir para os seus fins individuais, resmas de mangas-de-alpaca para cada entorse legal. Embriaga-se com o próprio sucesso, e nada o satisfaz. Para o animal feroz, a Pátria é um conceito ultrapassado e inútil, o seu Deus é ele próprio, e o paraíso uma selva em que reine, com tudo a que acredita legitimamente ter direito – e não lhe chega compor-se.
O animal feroz subiu a pulso e a punho, vendeu a alma e a face desde cedo e perdeu qualquer resquício de vergonha. É-lhe indiferente contradizer-se ou mentir, desde que não possa ser criminalmente acusado de nada: na sua noção de rectidão, uma decisão judicial equivale ao juízo público. Roça, no mínimo, a ilegalidade e exibe a arrogância de quem está seguro de que a teia que construiu lhe permitirá ficar impune. O grande problema é que a teia se alarga à medida da sua ambição, e são, por isso, mais que muitos os que dele dependem para se compor.
Nenhum destes dois espécimes trabalha, ainda que se arroguem publicamente de uma diligência a toda a prova O manga-de-alpaca rumina, reforma e regurgita a cartilha que estudou, o animal feroz estudou por outra cartilha, e elabora e remartela o digestivo do manga-de-alpaca. A insondável cumplicidade entre estas figuras que enxameiam o alto funcionalismo público não depende da posição relativa de um e outro.
O animal feroz assegura ao manga-de-alpaca a carreira no funcionalismo público político, o manga-de-alpaca fornece ao animal feroz o apoio institucional que lhe permite não ser penalizado, não ser demitido, não ser judicialmente acusado, em suma, ficar impune. Um e outro parasitam, há longos anos, um país demasiado débil para os sustentar.

6 comentários:

Germana disse...

Cru. Sarcástico. Real.
Excelente.

Eu sabia que havia de receber sinais de vida... Tardou, mas regressaste ao meu universo de uma forma fantástica. Este texto é TEU, sem dúvida alguma.

Quero mais, Paula:)

Sara F. Costa disse...

Adorei, Paula! Continuação de excelente escrita e excelentes reflexões!

mtlago disse...

Maravilhoso Mana.

Posso partilhar no facebook??

Bjssss

Maria Paula Lago disse...

Partilha, mana, é isso mesmo que queremos

Elso Lago disse...

Eu ouso aplaudir ruidosa e efusivamente! E dou-me ao abuso admirativo de reivindicar "encore"!!

Maria Paula Lago disse...

Quem te ensinou Português, meu menino? Estás um poeta!